A reconfiguração do Regime Jurídico da Promoção Militar por Tempo de Serviço em Goiás: Análise da Superação da Simultaneidade e seus Desdobramentos
Laciel Rabelo de Castro Costa Capitão da Polícia Militar, Pós-graduado em Direito. Autor do Livro: Lições de Direito Disciplinar Militar. E-mail: laciel@gmail.com
Resumo: O presente estudo revisita e
aprofunda a tese de que a promoção militar por tempo de serviço, prevista no
Art. 100, §12 da Constituição Estadual de Goiás, deveria ter sido concedida na
ativa, refutando a noção da "promoção pós-reserva" decorrente da
exigência de simultaneidade do §13. Argumenta-se que o referido Art. 100, §13,
foi tacitamente revogado pela Lei Federal nº 13.954/2019, a qual, ao redefinir
as normas gerais e a autonomia legislativa estadual, tornou-o materialmente
inoperante e incompatível com o equilíbrio atuarial previdenciário. Essa
interpretação progressiva, que garante o efetivo exercício do posto ou
graduação, foi explicitamente reforçada pela Lei Federal nº 14.751/2023 e,
subsequentemente, formalizada pela Lei Ordinária Estadual nº 23.118/2024. O
artigo elucida a aplicação temporal da norma, abordando a situação dos
militares que preencheram os requisitos após dezembro de 2019 e daqueles já na
inatividade, discutindo os direitos adquiridos e as repercussões financeiras
daí advindas.
Palavras-chave: Promoção militar; Reserva
remunerada; Antinomia jurídica; Lei Federal nº 13.954/2019; Lei Federal nº
14.751/2023; Lei Estadual nº 23.118/2024; Aplicação temporal da lei; Direito
adquirido.
1.
Introdução: A Problemática da Simultaneidade na Promoção Militar Goiana
A carreira militar, estruturada sob
os primados da hierarquia e da disciplina, prevê sistemas de promoção que visam
reconhecer a progressão e a dedicação dos seus integrantes ao longo do tempo de
serviço, como é o caso no Estado de Goiás, do Art. 100, §12, da Constituição
Estadual (CE) que estabelece o direito à
promoção por tempo de serviço.Contudo, o §13 do mesmo dispositivo impunha uma
condicionante peculiar: a exigência de que o requerimento para tal promoção
fosse concomitantemente vinculado ao pedido de transferência para a reserva
remunerada.
Esta prática, informalmente e de
forma equivocada denominada "promoção pós-reserva", resultava na
promoção do militar apenas no ato de sua inatividade, subtraindo-lhe a
oportunidade de exercer, de fato, o novo posto ou graduação na plenitude do
serviço ativo. Tal arranjo configurava-se como uma dissonância entre o
reconhecimento da progressão e a efetivação funcional.
O presente estudo propõe revisitar
e aprofundar a tese de que a mencionada exigência de simultaneidade já carecia
de respaldo legal muito antes da recente Lei Estadual. Busca-se demonstrar como
a revogação tácita do Art. 100, §13, da CE pela Lei Federal nº 13.954/2019,
somada à base explícita da Lei Federal nº 14.751/2023, pavimentou o caminho
para que a Lei Ordinária Estadual nº 23.118/2024 formalizasse um direito que já
se configurava no ordenamento jurídico: a promoção do militar da ativa por
tempo de serviço antes de sua passagem para a inatividade.
Analisa-se, ademais, a aplicação
temporal dessa reconfiguração normativa, assegurando o direito à promoção para
os militares que preencheram os requisitos em períodos anteriores à promulgação
da lei estadual mais recente.
2.
O Marco Federal e a Transformação do Paradigma Normativo
A autonomia legislativa dos entes
federativos em matéria militar é delineada pelas normas gerais de competência
da União, conforme preconizam os Art. 22, XXI, c/c Art. 142, §3º, X, e Art. 42,
§1º, da Constituição da República Federativa do Brasil. Previamente a 2019, o
Decreto-Lei nº 667/69 impunha restrições a essa autonomia, vedando que
legislações estaduais conferissem aos militares condições consideradas
"superiores" às das Forças Armadas (antigo Art. 24). Essa limitação
repercutia diretamente nos critérios de promoção.
A Lei Federal nº 13.954, de 16 de
dezembro de 2019, promoveu alteração substancial no Art. 24 do Decreto-Lei nº
667/69, que passou a dispor:
"Os direitos, os deveres, a
remuneração, as prerrogativas e outras situações especiais dos militares dos
Estados, do Distrito Federal e dos Territórios são estabelecidos em leis
específicas dos entes federativos, nos termos do § 1º do art. 42, combinado com
o inciso X do § 3º do art. 142 da Constituição Federal."
A alteração suprimiu a vedação
anterior, que obstava os Estados de estabelecerem condições distintas daquelas
aplicáveis às Forças Armadas. Essa modificação revelou-se fundamental, pois
conferiu aos Estados maior competência legislativa para disciplinar a carreira
militar, incluindo as promoções, desde que em consonância com as novas
"normas gerais" do sistema de proteção social militar.
Com a entrada em vigor da Lei
Federal nº 13.954/2019, o Art. 100, §13, da Constituição do Estado de Goiás,
que impunha a simultaneidade entre promoção e reserva, tornou-se inoperante.
Embora uma lei federal ordinária não possua o condão de revogar formalmente um
dispositivo constitucional estadual, a incompatibilidade material e sistêmica
gerada pelas novas "normas gerais" federais – especialmente as
relativas ao equilíbrio atuarial do sistema previdenciário (Art. 24-A, B e C do
DL 667/69 alterado) – esvaziou a eficácia da exigência de simultaneidade.
Argumenta-se, portanto, a ocorrência de uma revogação tácita do
dispositivo constitucional estadual em face do novo regime federal, conforme já
sustentado por Costa (2023), ao afirmar que a norma federal desobrigou os
Estados a manterem dispositivos locais que conflitassem com o novo paradigma,
permitindo que a promoção por tempo de serviço ocorresse "enquanto o
policial se encontrar na atividade".
A tese é robustecida pela
promulgação da Lei Federal nº 14.751, de 12 de dezembro de 2023, que
expressamente prevê a promoção ao posto ou graduação imediatamente superior
para o militar que completar os requisitos para a transferência a pedido ou
compulsória para a inatividade. O Art. 14, parágrafo único, desta lei federal,
constitui a base legal direta para a modalidade de promoção que se efetiva
antes da inatividade.
Corroborando essa fundamentação,
observa-se que o Art. 1º da Lei Ordinária Estadual nº 23.118/2024 expressamente
invoca a previsão federal:
"Esta
Lei dispõe sobre a promoção por completar os requisitos para a transferência a
pedido ou compulsória para a inatividade aos militares do Estado de Goiás,
prevista no parágrafo único do art. 14 da Lei federal nº 14.751, de 12 de
dezembro de 2023." ( Ver Lei Ordinária 23.118, Art. 1º)
A existência dessa previsão específica em lei federal, datada de 2023, corrobora que a possibilidade de uma promoção sem a simultânea passagem para a inatividade já era uma diretriz federal. Assim, a partir de dezembro de 2019 (com a Lei nº 13.954/2019) e, mais diretamente, a partir de dezembro de 2023 (com a Lei nº 14.751/2023), o militar que preenchia os requisitos para a promoção por tempo de serviço já possuía o direito de ser promovido sem a concomitante passagem para a inatividade, com base na interpretação sistemática do novo ordenamento jurídico e na expressa previsão de lei federal.
3.
A Lei Estadual nº 23.118/2024: Consolidação e Detalhamento
A Lei Ordinária Estadual nº
23.118, de 27 de novembro de 2024, constitui a confirmação legislativa e a
regulamentação explícita do novo cenário jurídico para a promoção militar em
Goiás, baseada na previsão da Lei Federal nº 14.751/2023. Esta lei estadual
disciplina especificamente a "promoção por completar os requisitos para a
transferência a pedido ou compulsória para a inatividade aos militares do
Estado de Goiás".
O Art. 2º da Lei nº 23.118/2024
estabelece a promoção do policial ou bombeiro militar ao posto ou graduação
imediatamente superior. De forma categórica, seu §1º preceitua:
"§ 1º O militar promovido nos
termos do caput deste artigo deverá requerer a sua transferência para a reserva
remunerada no período máximo de 30 (trinta) dias, a contar da data da
publicação da promoção."
Este dispositivo normativo formaliza a separação temporal entre a promoção e o pedido de reserva. Adicionalmente, o Art. 3º, inciso I, da mesma lei garante que o militar promovido sob esta modalidade "integra o quadro de militares da ativa", assegurando o efetivo exercício do novo posto, ainda que por um período limitado antes da transição para a inatividade.
A Lei nº 23.118/2024 reitera,
outrossim, que essa promoção "independe de vaga, habilitação em curso ou
estágio e de qualquer outro requisito não previsto neste artigo" (Art. 2º,
§3º), em consonância com o Art. 100, §12, da Constituição Estadual.
A promulgação da Lei Ordinária
Estadual nº 23.118/2024 representa o exercício concreto da autonomia
legislativa estadual, conforme permitido pela Lei Federal nº 13.954/2019 e em
conformidade com a previsão específica da Lei Federal nº 14.751/2023. Ela fornece
o arcabouço normativo para uma modalidade de promoção que já se sustentava
juridicamente em nível federal e infraconstitucional estadual, dirimindo
ambiguidades e conferindo segurança jurídica ao processo.
4.
Da Interação Normativa e Aplicação Temporal do Direito
A relação entre os dispositivos
legais analisados configura um quadro de interação normativa, com implicações
claras para a aplicação temporal do direito de promoção.
4.1.
Do Art. 100, § 13 da CE: Inoperância Confirmada pela Revogação Tácita
O Art. 100, §13, da Constituição do
Estado de Goiás não foi formalmente revogado pela Lei Ordinária Estadual nº
23.118/2024, visto que uma lei ordinária não possui a hierarquia constitucional
para tal.
Contudo, a Lei nº 23.118/2024, ao
dispor de forma expressa e oposta sobre a promoção sem a exigência de
simultaneidade com a reserva, confirma a inoperância e inaplicabilidade
material do Art. 100, §13, da CE para a modalidade de promoção que visa a
inatividade. A nova lei estadual constitui uma norma especial e posterior que
reflete o alinhamento com as normas gerais federais (Lei nº 13.954/2019) e a
previsão específica da Lei Federal nº 14.751/2023, prevalecendo para o caso
concreto.
A análise inicial sobre a revogação
tácita desse dispositivo pela Lei Federal de 2019, fundamentada na
incompatibilidade com o novo regime previdenciário militar, encontra-se agora
reforçada e legalmente concretizada.
4.2.
O Art. 100, §12 da CE: Detalhamento e Coexistência
Sendo assim, o Art. 100, §12, da
Constituição do Estado de Goiás, que estabelece o direito à promoção por tempo
de serviço independentemente de vaga ou curso, permanece plenamente em vigor.
A Lei Ordinária Estadual nº
23.118/2024 atua como o instrumento legal que detalha e concretiza esse
direito constitucional, especificando os requisitos e o procedimento para sua
aplicação no contexto da transição para a inatividade. Assim, observa-se uma
relação de coexistência e complementaridade entre os dois dispositivos.
4.3.
Aplicação Temporal: O Direito Consolidado em Fases
A tese da promoção sem a
simultaneidade da reserva abarca a aplicação temporal do direito, considerando
as seguintes fases do rearranjo normativo:
1.
Período
Anterior à Lei Federal nº 13.954/2019 (Dezembro de 2019): O Art. 100, §13 da CE
estava plenamente em vigor, condicionando a promoção à simultânea transferência
para a inatividade
- Período
Pós-Lei Federal nº 13.954/2019 (Dezembro de 2019) até a Lei Estadual nº
23.118/2024 (Novembro de 2024):
A partir da vigência da Lei Federal nº 13.954/2019, o Art. 100, §13 da CE
tornou-se inoperante, configurando sua revogação tácita. Essa
inoperância foi reforçada pela Lei Federal nº 14.751/2023, que
expressamente previu a promoção para a inatividade. Militares que, nesse
interstício, preencheram os requisitos para a promoção por tempo de
serviço já possuíam o direito de ser promovidos sem a exigência de
simultânea passagem para a inatividade, derivado da nova sistemática
normativa federal e da previsão explícita de lei federal, garantindo o
efetivo exercício do posto ou graduação, conforme sustentado por Costa
(2023).
- Período
Pós-Lei Estadual nº 23.118/2024 (Novembro de 2024 em diante): A Lei nº 23.118/2024
formaliza e detalha a promoção antes da reserva, implementando a
previsão federal. Para os militares que cumprirem os requisitos a
partir de então, o procedimento é claramente estabelecido por lei. Para
aqueles que já haviam adquirido o direito no período anterior, a Lei de
2024 atua como um instrumento de confirmação e operacionalização de um
direito já existente e respaldado federalmente.
5.
Considerações Finais
A evolução do regime jurídico da
promoção militar por tempo de serviço em Goiás demonstra uma reconfiguração
normativa pautada pela coerência e pela segurança jurídica. A exigência de
simultaneidade entre promoção e reserva, antes presente no Art. 100, §13, da
Constituição Estadual, foi superada em fases: inicialmente, pela revogação
tácita e inoperância material decorrente das alterações promovidas pela Lei
Federal nº 13.954/2019; subsequentemente, pela previsão expressa na Lei
Federal nº 14.751/2023; e, por fim, pela formalização e detalhamento
através da Lei Ordinária Estadual nº 23.118/2024, que implementa essa diretriz
federal.
A Lei de 2024 não cria um direito ex
novo, mas consolida e instrumentaliza uma prerrogativa já reconhecida no
sistema jurídico a partir da Lei Federal de 2019 e, mais explicitamente, da Lei
Federal de 2023. Isso garante que o direito à promoção sem a simultânea
passagem para a inatividade se aplique a todos os militares que preencheram os
requisitos de tempo de serviço a partir de dezembro de 2019, independentemente
da data de promulgação da lei estadual mais recente.
Essa reconfiguração normativa
confere clareza e previsibilidade ao processo de promoção, assegurando o
reconhecimento profissional do militar no final de sua carreira e alinhando o
sistema goiano às diretrizes federais e a uma interpretação jurídica progressiva
e favorável ao militar. O estímulo da última promoção, com o efetivo exercício
do novo posto, tal como defendido desde o início, é agora uma realidade
normativa.
Por fim, impende salientar que a
garantia do direito à promoção por tempo de serviço, prevista
constitucionalmente e agora reforçada pelas leis federais e pela lei estadual
de 2024, não se restringe apenas aos militares que ainda se encontram na ativa.
Aqueles que já foram transferidos para a reserva remunerada sem terem recebido
a promoção a que faziam jus – por terem preenchido os requisitos antes ou
durante o período de transição normativa em que o Art. 100, §13 da CE já era
inoperante pela sua revogação tácita – possuem um direito adquirido que pode
ser reivindicado. A nova legislação e a interpretação sistêmica do ordenamento
jurídico fortalecem a base para pleitos administrativos ou judiciais
retroativos, visando à correção de eventuais omissões ou equívocos na concessão
do benefício, com seus reflexos financeiros nos proventos de inatividade.
Referências
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Lei nº 13.954, de 16 de dezembro de 2019. Altera a Lei nº 6.880, de 9 de
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1960, a Lei nº 4.375, de 17 de agosto de 1964 (Lei do Serviço Militar), a Lei
nº 5.821, de 10 de novembro de 1972, a Lei nº 12.705, de 8 de agosto de 2012, e
o Decreto-Lei nº 667, de 2 de julho de 1969, para reestruturar a carreira
militar e dispor sobre o Sistema de Proteção Social dos Militares; revoga
dispositivos e anexos da Medida Provisória nº 2.215-10, de 31 de agosto de
2001, e da Lei nº 11.784, de 22 de setembro de 2008; e dá outras providências.
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para a organização e o funcionamento das Polícias Militares e dos Corpos de
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Lei nº 23.118, de 27 de novembro de 2024. Dispõe sobre a promoção por completar
os requisitos para a transferência a pedido ou compulsória para a inatividade
aos militares do Estado de Goiás, prevista no parágrafo único do art. 14 da Lei
federal nº 14.751, de 12 de dezembro de 2023, altera a Lei nº 20.946, de 30 de
dezembro de 2020, que dispõe essencialmente sobre o Sistema de Proteção Social
dos Militares do Estado de Goiás – SPSM/GO, e a Lei nº 8.000, de 25 de novembro
de 1975, que dispõe essencialmente sobre os critérios e as condições de
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Disponível em: [Link da Lei Estadual de Goiás 23.118/2024, se disponível
online]. Acesso em: [Data de Acesso].
COSTA,
Laciel Rabelo de Castro. Lições de Direito Disciplinar Militar. História e
comentários sobre o regulamento disciplinar da Polícia Militar do Estado de
Goiás, decreto 4717 de 7 de outubro de 1996. Ed. Puc, 2011.
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